Da inocência e seus delírios

A realidade dos inocentes é um mundo apartado de qualquer racionalização paupável, que possa ser exposta aos olhos curiosos e maculadores dos que já passaram, mesmo que há muito e assaz rapidamente, pela primavera em que o cheiro dourado e o colorido adocicado dos motivos sem razão se sobrepunham a tudo. Isso porque, quando me refiro a "Inocência", refiro-me ao estado de pureza dos sentidos: quando todos os sentimentos e sensações tidas como inferiores ou impuras estão presentes (afinal são inerentes), mas simplesmente são, ou como talvez dissesse Caeiro, quando eles fazem parte da natureza, irrefletidos como a natureza deve ser. Os medos, os desejos e os rancores são irracionais. Quando eu era pequena tinha muitos medos (de perder meus pais, do escuro, dos sonhos inexplicáveis, de não ter nada que me sustentasse no mundo e de comer peixe); tinha algumas paixões e infinitos rancores. Ainda tenho todos eles, porém de maneira muito diferente: descobri que todos eles têm uma razão subjacente (mesmo que eu não a conhaça). Quando eu era apenas uma garota temia o escuro simplesmente por ele ser escuro, e isso bastava. Hoje sei que o que me assusta é o desconhecido, sempre latente, do qual ele é o maior representante. Odiava o que me incomodava, sem nunca questionar os motivos. Amava tudo o que fazia com que meus olhos brilhassem, e nada mais. Quando eu tinha 7 anos minha avó morreu e eu não chorei. Vi o desespero nos olhos vermelhos de todos e me perguntei por que logo eu, que a amava tanto e lhe era tão mais próxima que aquelas outras pessoas, não era capaz de chorar por ela. Acontece, entretanto, que não insisti no assunto, pois ele não me causava dor. Assim, na época fiquei sem respostas, mas hoje sei que a morte só apavora quando se questiona e não se encontra soluções. Eu, que então era, sem o saber, como Alberto Caeiro, não questionava, só sentia. Não senti o peso da morte e por isso não chorei. Hoje todos os meus momentos são pautados por uma razão qualquer que, ainda meio obscurecida, me persegue. Nem o amor, nem o ódio e nem o desejo são mais totalmente irracionais. Todos eles, em mim, tentam se esconder sob o véu já muito gasto que ainda me cobre os olhos (embora prestes a cair). Minha neurose hoje, no entanto, é não poder esmiuçá-los e sentir mais agudos os tormentos que eles trazem a todas as almas sensíveis. Ou talvez isso seja só uma forma de me torturar por não saber explicar o motivo pelo qual enquanto os dias passam e o azul do céu se torna mais cinza, minha alma se torna mais insensível aos meus sofrimentos e mais simpática à dor, seja está explicável ou não. * São delírios de quem está entre dois extremos, bem no meio do caminho entre o tudo e o nada.

Comentários

D ... disse…
é justamente isso que faz com que eu seja tão dependente de vc, minha amiga.
Acho que todas essas "vivências" que eu vou semeando na minha história tem uma essência tão intensa que eu sozinha e por mim mesma não posso compreendê-las. Apesar de me considerar simples e previsível, não sou capaz de entender a forma como vou vivendo, navegando ao sabor dos ventos.
Aí, preciso de alguém pra quem eu possa contar tudo e que vai me desembaçar os olhos e desenhar uma rosa-dos-ventos das linhas da minha palma.
Não uma vidente, mas alguém que saiba ser coerente e enxergar a estrutura profunda, "o quadrado semiótico" das minhas histórinhas todas.

Por isso Luise. vc tem o poder!!! :O
Anônimo disse…
Muito legal o texto, me lembrei de quando meu avô morreu... Eu senti a exata coisa que você descreveu, não sabia porque tinha que chorar e não queria chorar. Fiquei triste, mas não tão amedrontado assim, e então tentava forçar umas lagrimazinhas mixurucas só pra provar que também podia... Vai entender...

Postagens mais visitadas deste blog

Memórias de mim

A arte dos fracos

Lá e de volta outra (terceira) vez?